quinta-feira, 1 de março de 2012

A EXECUÇÃO DAS ATIVIDADES POLICIAIS À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

Por Jorge Castro1

Resumo:

O artigo pretende expor um aspecto constitucional presente no dia-a-dia da atividade policial, que ao contrário do que acredita o senso comum, não se resume a um ramo “atendido” única e exclusivamente por ares penais e processuais penais. O Autor escolhido para servir de alicerce a este estudo foi Rogério Greco2, que tem uma forma brilhante de explanar sobre o assunto. Entre seus livros, limitei-me à consulta de apenas dois3, que foram de excelente proveito à elaboração deste texto. O estudo comprova que, embora o conceito de Dignidade Humana seja de alta complexidade, é possível estabelecer parâmetros mais simplórios à necessária união deste com os outros aspectos - penal e processual penal.
Dignidade Humana, o início

Demonstrar a origem da dignidade humana como um valor a ser respeitado por todos não é tão fácil quanto se imagina. No entanto, se analisada pelo referencial histórico, pode-se dizer que uma de suas raízes encontra-se no Cristianismo. A ideia, por exemplo, de igualdade e respeito entre os homens, sendo irrelevante a essas relações as “posições” que cada um ocupava, demonstra que o verdadeiro cristianismo, aquele idealizado na figura de Jesus, pode ser uma das colunas de sustentação desse complexo “edifício da dignidade humana”.4


Tomou-se o cuidado de mencionar o cristianismo verdadeiro, aquele representado pela figura de Jesus, simplesmente porque os próprios homens, ao longo dos anos, foram responsáveis pela sua modificação, a fim de satisfazer os seus desejos egoístas e crueis, a exemplo do que ocorreu durante o período chamado “Santa Inquisição” (que tem em seu título a presença de uma antítese, pois de acordo com o dicionário Priberam de Língua Portuguesa5, o termo: “Santa”, associa-se com tantos outros, que podem ter, em si, significados antônimos à “inquisição”), no qual foram praticadas inúmeras atrocidades, mas tudo, inclusive e principalmente as ilicitudes, eram cometidas “em nome de Deus”. Porém, a base do cristianismo, pode ser o nosso primeiro marco de estudo para o conceito da dignidade humana.


Não é tão relevante apegar-me a pontos históricos, passando, assim, diretamente ao período Iluminista, ao século das luzes, no qual, como diria Rogério Greco, “a razão acendeu uma fogueira, colocando luz à escuridão existente até aquele momento”. Os séculos XVII e XVIII foram fundamentais tanto ao reconhecimento como à consolidação da dignidade humana como um valor a ser respeitado por todos.


Em várias situações, somente a análise do caso concreto nos permitirá saber se houve ou não a efetiva violação da dignidade da pessoa humana. Não se pode desprezar, ainda, para efeitos de reconhecimento desse conceito, a diversidade histórico-cultural que reina entre os povos. Assim, aquilo que numa determinada cultura pode ser tido como uma gritante violação dos direitos à dignidade do ser humano, em outra pode ser reconhecida como uma conduta honrosa. Como exemplo, cito a Doutrina Hinduísta, que mantém um regime jurídico no qual o seu povo é distinto e separado por castas, o que torna alguns direitos fundamentais inviáveis, tendo em vista a divergência entre as normas e os costumes.


Temos, ainda, a possibilidade de aplicação de pena de morte, como acontece na maioria dos Estados norte-americanos. Porém, como bem destaca Ingo Wolfgang Sarlet, deve-se perguntar “até que ponto a dignidade não está acima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos, encontrando-se profundamente enraizados na prática social e jurídica de determinadas comunidades. Em verdade, ainda que se pudesse ter o conceito de dignidade como universal, isto é, comum a todas as pessoas em todos os lugares, não haveria como evitar uma disparidade e até mesmo conflituosidade sempre que se tivesse de avaliar se uma determinada conduta é, ou não, ofensiva à dignidade”.6


Para Greco, a dignidade é “algo inerente ao se humano, um valor que não pode ser suprimido, em virtude da sua própria natureza. Até o homem mais detestável, o criminoso mais frio e cruel é portador desse valor”7. Podemos adotar, então, o conceito proposto por Sarlet, que procurou condensar alguns dos pensamentos mais utilizados para definição do conceito de dignidade da pessoa humana, afirmando que essa é

“a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.8


O século XX, principalmente após as atrocidades cometidas pelo nazismo, presenciou o crescimento do princípio da Dignidade Humana, bem como sua formalização nos textos das Constituições, especialmente as Democráticas, como é o caso da Constituição Brasileira.
Portanto, pode-se afirmar, sem receio algum que, de todos os princípios fundamentais que foram propostos e consequentemente conquistados ao longo dos anos, o que mais se destaca é o princípio da dignidade da pessoa humana.


Este princípio serve como regente de muitos outros, tal como ocorre com o princípio da individualização da pena, que nele busca seu fundamento de validade.
As Constituições modernas, como a brasileira, adotam, expressamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, conforme se verifica em seu art. 1, inciso iii9; Percebe-se, portanto, a preocupação do legislador constituinte em conceder um status normativo a este princípio, entendendo-o como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, ou seja, algo extremamente necessário ao texto legislativo.


A dignidade humana, por ser um princípio constitucional, pode ser considerada, hierarquicamente, superior. Destina-se a orientar todo o sistema no que diz respeito à criação legislativa, bem como para conferir a validade das normas que lhe são inferiores. Ou seja, qualquer outro dispositivo legal deve se ater à Norma Constitucional, estando esse impedido legalmente de ir de encontro a esta, que como dito anteriormente, é hierarquicamente superior. Assim, por exemplo, o legislador infraconstitucional estaria proibido de criar tipos penais incriminadores que atentassem contra a dignidade humana ficando proibida a cominação de penas cruéis ou de natureza aflitiva. Da mesma forma, estaria proibida a instituição da tortura, como meio de se obter a confissão de um indiciado/acusado (por maior que fosse a gravidade, em tese, da infração penal praticada), pois se tal ato fosse permitido, entraríamos então em total desavença entre a Constituição e este outro dispositivo.

Vale lembrar que, apesar de ser ilegal, a tortura por parte das forças policiais, de qualquer natureza, é realidade conhecida por todos, trazida à tona por diversos canais, tais como noticiários, documentários etc.; O filme “Tropa de Elite”, lançado em 2007, mais do que qualquer outro, influenciou o pensamento, e também o comportamento, das pessoas, chamando-as a uma reflexão sobre a execução das atividades policiais. No filme, há cenas em que policiais torturam suspeitos para conseguir deles algumas informações, confissões, isso realmente acontece, às vezes com maior ou menor crueldade, mas acontece. Por um lado temos a necessidade de executar uma prisão, apreensão etc., necessidades estas impostas pela lei, visando o bem estar social, porém, por outro lado, temos, também, há dispositivos legais que impedem a tortura, forma-se, então, um paradoxo que tende, no mais das vezes, contra o suspeito, embora a Constituição diga o contrário.

O Estado e o desrespeito ao Princípio da Dignidade Humana


Embora o Princípio da dignidade da pessoa tenha sede constitucional, sendo, portanto, considerado com um princípio expresso, percebemos, em muitas situações, a sua violação pelo próprio Estado. Assim, aquele que deveria ser o maior responsável pela sua observação, acaba se transformando em seu maior infrator.


A CB/88 reconhece, por exemplo, o direito à saúde, educação, segurança, moradia, lazer, alimentação, ou seja, direitos “mínimos”, básicos e necessários para que o ser humano tenha uma condição de vida digna. No entanto, em maior ou menor grau, esses direitos são descuidados pelo Estado. Observe-se o que ocorre com o sistema penitenciário brasileiro. Indivíduos, homens e mulheres, que foram condenados ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade são afetados, diariamente, em sua dignidade, enfrentando problemas como espancamentos, superlotação carcerária, ausência de programas de reabilitação etc. A ressocialização do egresso é uma tarefa quase impossível, pois não existem programas que partam dos governos e tratem de sua reinserção social, além do fato de haver, por parte da sociedade, uma aversão a ex-detentos, o que agrava ainda mais o problema.


O que se exige da polícia

No Prefácio do Manual de Formação em Direitos Humanos para as Forças Policiais (Direitos Humanos e Aplicação da Lei), José Alaya Lasso, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, aponta, com precisão, as consequências pelo descumprimento das leis por parte das forças policiais, bem como, por outro lado, o que ocorre quando as leis são cumpridas e os direitos humanos respeitados, apontando os prós e os contras, explanando sobre as ações e suas conseqüências e, enfim trazendo o que parece óbvio: Quando a autoridade detentora do poder de polícia age de forma “ilícita”, ou seja, cometendo os mais diversos crimes e fazendo de sua presença, a presença do medo, este agente não está apenas atentando contra a Dignidade Humana, mas está, principalmente, distinguindo cada vez mais a imagem da polícia a uma imagem de segurança e tranqüilidade, ou seja, traz consigo a figura não de quem irá proteger, manter a paz e a ordem, mas sim de um “inimigo do povo”. Para que se perceba isso, basta assistir a um telejornal ou conversar com algum morador de uma região onde conflitos são constantes, cito favelas e comunidades carentes.


Agora, quando estes agentes agem de acordo com o que se espera, cumprindo-se realmente sua função e levando-se em consideração os direitos humanos, vê-se aumentada, efetivamente, a eficácia das ações policiais, que além de ser um imperativo ético e legal, constitui também uma exigência prática em termos de aplicação da Lei. Com isso, aumenta a confiança do público, estimula-se a cooperação da comunidade, e, por conseguinte, chega-se a uma aproximação da polícia com a sociedade, o que aumenta a efetividade no atendimento às demandas estabelecidas pelas necessidades básicas da segurança pública.
Ou seja,

“Os agentes policiais e serviços responsáveis pela aplicação da lei que respeitam os direitos humanos colhem, pois, benefícios que servem os próprios objetivos da aplicação da lei que não se baseia no medo ou na força bruta, mas antes na honra, no profissionalismo e na dignidade”.10


Luta-se, então, para envolver cada vez mais a polícia com a população, de forma que estes passem a se respeitar e colaborar uns com os outros, tanto a polícia, cumprindo sua função de mantenedora da paz e da ordem social, quanto da população, que, muitas vezes, por viver na “zona de confronto”, têm informações privilegiadas que nem mesmo as forças policiais têm. Claro que esta harmonia depende, principalmente, da observância por parte do Estado dos Princípios Fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito.

1 Jorge Castro é acadêmico do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor de português. Investigador da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Paraná, lotado no Departamento de Polícia Civil. jorgecastro7152@gmail.com.
2 Rogério Greco é Procurador de Justiça em MG. Membro fundador do Instituto de Ciências Penais(ICP) e da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Mestre em Ciências Penais pela UFMG, Especialista em Direito Penal, pela Universidade de Salamanca. Doutorando pela Universidade de Burgos. Palestrante e Congressista.
3 Atividade Policial. Impetus, 2009/Curso de Direito Penal. Impetus, 6ª edição, v. 1, 2006.
4 GRECO, Rogério. Atividade Policial. Impetus, 2009, p. 7.
5Dicionário Priberam de Língua Portuguesa, disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=santa, acessado em 08/11/2011.
6 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 55-56.
7GRECO, Rogério. Atividade Policial. Impetus, 2009, p. 9.
8 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 58.
9A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: a dignidade da pessoa humana.
10 LASSO, José Alaya. Direitos humanos e aplicação da lei – Manual de formação em direitos humanos para as forças policiais, p. V e VI.


FONTE: PolicialBr

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