Por SGT Barbosa Silva
Um velho conhecido me contou
essa história baseada numa ocorrência policial real vivida pelo amigo e
combatente. Alisson Maia.
Uma história pode ser contada de várias formas. Esta quem conta tem
conhecimento do que cada personagem sente. Aliás, nesse caso, os personagens
sentem o próprio narrador dessa história.
- Eles estavam abraçados Comandante... Abraçados. Falou o motorista consternado.
Olá! Costumo contar minhas histórias da maneira que as vejo, ao contrário
daqueles, muitos, que as contam aumentando os fatos ou ainda me omitindo do
enredo.
Antes me apresento assim: sou mediano e meu excesso ou minha ausência são
perniciosos. No primeiro caso consigo te paralisar, literalmente, tolhendo seus
movimentos, te impedindo de agir para se salvar. Afinal quem nunca ficou
paralisado de medo? No segundo caso, sou apelidado de excesso de confiança e o
preço pago por ele, geralmente, é caro.
No Perigo se sai melhor aquele que consegue manter-se equânime na minha frente.
Por falar no Perigo, saiba que ele é meu parceiro inseparável e sem ele eu
simplesmente deixaria de existir.
Em algumas pessoas sou mais necessário, principalmente pela fragilidade delas.
Falo das Crianças. Sempre trabalho bem próximo delas para ajudá-las a se
afastar do perigo, para dar a oportunidade delas cumprirem seu ciclo aqui na
terra. Não é à toa que facilmente podemos impressioná-las. Nelas, no entanto
nos adultos também ajo hiperbolizando as coisas, provocando a ação de fugir e
amplificando o meu amigo Perigo.
Quem for Pai ou Mãe irá sentir o meu gosto com o que vou narrar agora, mas isso
ajudará para que não se repita algo parecido, pelo menos enquanto eu estiver
relembrando isso nas suas mentes.
Gosto da área policial. Estou presente em todos os envolvidos com ela seja como
policial, seja como bandido, seja como vítima. Mais ainda porque, devido a
vergonha, insistem em me disfarçar por meio de palavras corajosas, firmes e
mentirosas. Lembrando, teoricamente eu sou proibido para os policiais, mas
sabemos que não é bem assim.
Como de costume, num dia de serviço ordinário eu me aprontava para acompanhar a
Rádio Patrulha 04 (RP) da área central de Rio Branco. Quarta feira é um dia
calmo para os policiais, se é que existe dia calmo para essa profissão. Dezenas
de ocorrências, mas todas sem a minha presença, dessas ninguém se lembra –
briga de marido e mulher, discursão entre vizinhos. Entretanto, amigo (posso te
chamar assim? Sei que eu posso), para tudo existe uma exceção.
O serviço de doze horas corridas é considerado curto, pois a dinâmica da vida
policial acelera as coisas. A guarnição se encontrava patrulhando naquela tarde
do ano de 2004. Uma voz sai do rádio e informa mais uma daquelas ocorrências
insípidas da qual eu não gosto.
- RP 04 desloca na rua Gaúcha, bairro Prevenção. A situação lá é “abandono de
incapaz”. Confirma por gentileza a veracidade dos fatos. Falou a voz chiada do
rádio.
A informação era que crianças tinham sido abandonadas pela mãe.
- Ok em deslocamento para o local. Respondeu o Cabo, comandante do Serviço.
No local os policias agiram como de costume e colheram informações sobre as
vitimas e sobre a possível criminosa. Quem passava as informações aos PMs era
uma avó aflita.
- Os senhores precisam fazer alguma coisa. Essas três crianças são meus netos.
A mãe deles mora nessa casa aos fundos da minha residência.
A casa era de madeira e aparentava ter sido feita de restos de outra casa. A sujeira
era marca daquele lugar e percebia-se que a pobreza tinha dado lugar à
imundície. Definitivamente estas palavras não são sinônimas, mas para muitos
aquela é desculpa para essa existir.
Ao lado da avó via-se três pares de olhos famintos ostentados por seres humanos
inocentes, filhos de uma mulher entregue a vida do álcool e das drogas. Segundo
denuncia da própria mãe, já debilitada pelo decorrer dos anos, a filha saia de
casa trancava os filhos e voltava dias após. As crianças passavam esse tempo sem
comer, sem beber água e sem uma mãe.
Dois, três e cinco anos eram as idades. Duas meninas e o irmão mais velho.
A guarnição já sabia como agir, pois isso é costumeiro nesse mundo pobre.
Pegaram as crianças e estavam levando para o Concelho Tutelar para que fossem
tomadas medidas de proteção àquelas criaturas. Na saída do quintal da casa os
militares foram interpelados:
- Pra onde “tão levando meus filhos”. Perguntou a mãe desnaturada. Era uma
mulher com vinte e poucos anos e marcada pelas noites de sono perdidas e pelo
consumo contínuo de drogas. Aparentava ter, no mínimo, uma metade a mais de sua
idade.
Com toda calma o comandante explicou a situação para a mulher, que sabia o
porquê daquilo tudo, mas disfarçava, e conduziu a mãe e os filhos para o Conselho
Tutelar Municipal. A viagem era breve, mas deu tempo para uma curta conversa
com as crianças curiosas. O Motorista pergunta ao primogênito, que por
coincidência tinha o mesmo nome que ele:
- Ei rapazinho, você não tem medo de ficar só em casa?
- Tenho, mas eu cuido de tudo. Eu cuido das minhas irmãs. Falou o garoto
tentando imitar um pai que não conhece, tentando ser o homem da casa que nunca
viu e tentando me disfarçar. Eu estava nele.
As risadas foram inevitáveis e os guerreiros da viatura viram naquele menino o
homem que seria um dia. As menininhas nada falavam até porque as palavras que
sabiam eram poucas. As características eram as mesmas a todas elas: fome,
ansiedade e EU que naquele momento dava uma trégua e saía dos olhos delas
devido à segurança da presença dos policiais e da mãe. Uma mãe sempre será uma
fortaleza segura para os filhos, independentemente do que elas façam.
Pronto. Crianças e mãe entregues aos Conselheiros e ali se encerrava a
participação dos militares na vida daqueles meninos, mas não na vida da mãe
deles.
Fim do serviço.
Início de outro serviço.
Quatro dias depois, lá estávamosmos nós novamente.
Um Cabo, um motorista, um patrulheiro e eu - o Medo -, disfarçado pela rotina.
A rotina me deixa oculto. A população em geral ao ver aquelas pessoas fardadas,
em todos os lugares possíveis, esquece do risco que elas passam e os
“fardados”, por sua vez, acostumam-se com o Perigo esquecendo às vezes de ter
medo. A rotina é o meu melhor disfarce.
Era manhã de domingo, famílias reunidas nas igrejas ou em suas casas
confraternizando, mas uma, a exemplo de várias famílias infelizes, não estava
assim. Estava desintegrada há tempos e na casa estavam apenas três integrantes.
Um menino e suas duas irmãs. O Pai era desconhecido, a mãe como de costume
sumira.
No rádio da Viatura mais uma ocorrência, contudo não era direcionada a nossa
guarnição, mas ao corpo de bombeiros. Em 2002 o sistema de rádio era integrado
e utilizava a mesma frequência para Polícia e Bombeiro Militares.
- Atenção todas as viaturas do Corpo de Bombeiros. Incêndio em residência de
madeira. Desloquem-se urgentemente à rua Gaúcha, bairro prevenção, numero 545.
O aviso foi repetido por três vezes.
Os ocupantes da RP 04 não deram muita atenção, pois outras ocorrências os chamavam,
mas o motorista da viatura teve um estranho pensamento que insistia em não
querer se confirmar na sua mente. Ele olhou para os companheiros e perguntou:
-Esse endereço não é o mesmo daquela ocorrência que atendemos no serviço
passado?
Os outros dois buscaram na mente entre as dezenas de endereços “visitados” do
último serviço e confirmaram que sim, já com as mentes povoadas por imaginações
ruins.
- Lá onde fica a casa faz parte da nossa área de atuação, uma viatura da PM
pode ser útil no auxilio aos Bombeiros, dirija para lá motorista. Falou o
comandante.
Enquanto dirigia, pensamentos ruins iam e vinha na mente do motorista que
pensava se algo de ruim poderia ter acontecido às crianças, contudo, ao mesmo,
numa tentativa de aliviar a tensão, imaginava no quanto seria improvável que
uma coisa de muito ruim pudesse ter acontecido àquelas criança.
- O conselho Tutelar tomou medidas protetivas e com isso a mãe tomou rumo na
vida, porém agora ela teria muito mais trabalho para criar os três filhos sem
ter uma casa para morar, pensava ele esperançosamente. O silêncio da dúvida dos
policiais durou até a chegada no local do incêndio. E um pensamento aliviante
surgiu ao condutor:
- A avó mora ao lado da casa e certamente estaria pronta para ajudar caso acontecesse
algo.
No local, centenas de curiosos com seus rostos assustados assistiam aos últimos
caracóis de fumaça saindo dos escombros carbonizados daquilo que era uma casa.
Particularmente, meu trabalho eu desenvolvi com maestria naquele dia, pois a qualquer
um que se olhasse eu estava impregnado nos seus olhos e no tom assustado da sua
voz.
Após dirigirem-se a um dos homens dos Bombeiros os PMs receberam a informação:
- Uma tragédia aconteceu, essa casa pegou fogo com...
- Três crianças que estavam dentro e morreram.. Completou o motorista.
O Bombeiro não precisou completar a frase, pois os policiais já sabiam desde o
começo, apenas não queriam acreditar.
Ao lado daquela casa em que estiveram há 4 dias os guardas puderam observar
três volumes fotografados por mim na mente deles, dois próximos um do outro,
como num último abraço, e outro mais afastado, perto da porta.
Sustentando a postura militar e tentando me esconder atrás dos olhos marejados,
o motorista olha para os demais integrantes e fala:
Eles estavam abraçados Comandante. Abraçados.
A avó em estado de choque apenas alternava entre palavras desconexas e
desmaios. A mãe sumida, da mesma forma de quando os policiais estiveram lá
anteriormente, com certeza voltaria a ver aqueles policiais para se entender
com a justiça.
Nem sempre vou conseguir me imprimir numa pessoa o suficiente para evitar o
pior. Eu falhei com aquela mãe. Ela não me teve o suficiente a ponto de saber
que poderia perder os filhos. Eu falhei. A morte não falha.
“ O medo da morte é o maior medo do homem, nele está o fulcro do modo de vida
de cada um, assim como o de todas as religiões.” Barbosa Silva Rai L.